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A produção da habitação e do habitat nas áreas rurais brasileiras é um tema distante da maioria dos arquitetos, pesquisadores e estudantes deste campo teórico-prático. A ausência de debates sobre este assunto em nossas trajetórias acadêmicas e profissionais, associada à reafirmação sistemática de um conceito hegemônico de cidade (uma espécie de 'pensamento único' sobre o que é o urbano), tem delimitado a questão da habitação social no Brasil como exclusividade dos territórios efetivamente urbanizados e da classe trabalhadora domiciliada nas cidades. Decorrente dos efeitos estruturais do próprio movimento do capitalismo – e não apenas das oscilações conjunturais da política brasileira –, este cenário tem definido e naturalizado um lugar específico para o exercício de nosso ofício, relegando as não cidades ao esquecimento e seus habitantes a uma cidadania de segunda ordem.

 

O direito à moradia e ao habitat para o campesinato brasileiro – apesar de a ele ser concedido um mínimo apoio prático do Estado através de políticas e programas sociais setoriais – ainda é considerado como um problema residual e, portanto, sem relevância para a reflexão teórica e para a ação política. Uma espécie de entrave que os avanços do capital ainda não foram capazes de superar, uma vez que, não raro, é difundida a ideia de que os processos de urbanização que avançam sobre as áreas rurais estariam associados à descaracterização do campesinato enquanto segmento social específico, portador de demandas específicas, e colocado à disposição para sua imediata incorporação à classe trabalhadora urbana. A questão da habitação nas áreas rurais, neste sentido, não se constituiria enquanto um problema para a arquitetura, tampouco para os arquitetos – e urbanistas.

 

A pesquisa que motivou a realização deste I Seminário Regional do Habitat Rural demonstrou o contrário. Intitulada “Produção do PNHR nos assentamentos rurais do estado de SP: inserção territorial e avaliação arquitetônica, construtiva e tecnológica”, esta pesquisa foi desenvolvida entre 2015 e 2018, com apoio do CNPq e da FAPESP e coordenado pelo HABIS - IAU/USP. Se inicialmente nosso interesse era analisar a produção recente do PNHR (Programa Nacional de Habitação Rural) em três assentamentos rurais do oeste paulista, o desenrolar dos trabalhos de campo acabou nos impondo uma abordagem da questão da habitação no meio rural a partir de uma perspectiva ampliada, orientada pela noção de habitat camponês – sem que a relação dialética entre o rural e o urbano fosse ignorada. Com isso, os objetivos da pesquisa, que antes estavam restritos aos arranjos operacionais e produtivos do programa habitacional ou até mesmo das políticas setoriais, passaram a incorporar os vínculos (muitas vezes ocultos) entre a questão da habitação no campo e as categorias terra, capital e trabalho.

 

Inseridos em uma região historicamente marcada pela grilagem e pelo conflito fundiário, não à toa o Pontal do Paranapanema concentra hoje o maior número de assentamentos rurais do estado de São Paulo e, ao mesmo tempo, seus habitantes têm assistido a uma expressiva territorialização do setor sucroenergético. Neste contexto, os três assentamentos analisados pela pesquisa foram os primeiros do estado cujos camponeses conseguiram acessar o PNHR. O problema habitacional fora daquilo que se designa como meio urbano, que aparentemente poderia ser resolvido pelo viés institucional de uma política pública setorial, demonstrou ser mais complexo do que poderíamos imaginar. Talvez, justamente porque o problema habitacional do campesinato se articula diretamente com uma questão estrutural do nosso capitalismo – profundamente marcado pelo seu caráter rentista e patrimonial – e que nós, da arquitetura, pouco conhecemos: a questão agrária brasileira.

 

Buscando compreender também os processos de estruturação dos assentamentos e sua inserção municipal, a pesquisa ampliou o debate sobre o conceito de cidade e, principalmente, sobre os elementos que constituem (ou deveriam constituir) um projeto de assentamento rural. As categorias de análise específicas a esta temática estiveram relacionadas: às infraestruturas existentes (ou não) nos assentamentos e suas relações com os programas de reforma agrária, crédito fundiário, de habitação e com o desenvolvimento da produção camponesa; às condições de acesso dos assentados aos serviços e equipamentos municipais; e às alternativas encontradas, pelos próprios camponeses, para suprirem a ausência de infraestruturas, serviços e equipamentos adequados às suas necessidades de vida e trabalho e, principalmente, à sua cidadania. No que diz respeito ao projeto e à produção habitacional, foram considerados os seguintes aspectos para a análise: a qualidade arquitetônica, construtiva e tecnológica dos projetos; a articulação (e os conflitos) entre os agentes sociais, empresariais e institucionais nas etapas de projeto e obra; e, a partir de algumas unidades habitacionais selecionadas, também foi analisada a relação entre a casa e as infraestruturas do assentamento e do lote unifamiliar, bem como a relação entre o núcleo habitado e o núcleo da produção da agricultura camponesa. Aliás, apesar de ser um tema pouco trabalhado na área de arquitetura e planejamento espacial, a produção camponesa da agricultura colocou em debate a questão da cidadania no campo e as condições de reprodução e emancipação social. A pesquisa procurou compreender e analisar, portanto, os mecanismos de acesso aos principais programas federais de fomento à produção pelos assentados, abrangendo as etapas de pré-produção, produção e comercialização, além de cursos e programas destinados à assistência técnica aos produtores.

 

Esperamos, portanto, que este I Seminário Regional do Habitat Rural possa contribuir para o debate e a difusão sobre os temas e as questões relacionadas à produção da habitação e do habitat nas áreas rurais brasileiras, especialmente nos assentamentos rurais do estado de São Paulo. A partir de leituras baseadas em diferentes áreas do pensamento científico, e tendo em vista o atual cenário político do país, também esperamos que (futuros) arquitetos, pesquisadores, profissionais, camponeses e representantes de movimentos sociais possam elevar este tema a um patamar de excelente qualidade teórica, prática e política.  

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